quarta-feira, 20 de maio de 2015

Palavras

Palavras, o que possuem de sensacional, possuem também de perigosas.
A comunicação oral é algo por si só fantástica. A evolução, por múltiplos erros de cópia, e por vários caminhos, permitiu a seleção natural sucessiva de descendentes, nos quais ocorreram variações e adaptações, convergentes muitas vezes, que nos permitiu a capacidade de articular sons complexos e sob controle mental e, onde, ao mesmo tempo, propiciou uma evolução nos nossos circuitos neurais que permitiu alguma consciência, e assim o desenvolvimento da fala caminhou direto para uma capacidade de conversação e comunicação. Isto por si só já é estupendamente maravilhoso.


No domínio da comunicação oral, elaboramos e desenvolvemos uma linguística que parece ser, em seu cerne, básica para toda e qualquer língua falada. Esta mesma evolução selecionou os indivíduos que possuíam “gravados” no cérebro, circuitos tais que permitiram uma linguagem básica, e uma capacidade mental de percepção-interpretação natural desta “linguística”. A capacidade de se comunicar intencionalmente foi um diferencial para nossa sobrevivência, tanto que todos já nascemos com uma sensibilidade linguística básica programada.

O problema é que o mesmo cérebro que evoluiu para possibilitar a comunicação, sempre teve uma meta maior, que era a de preservar nossa vida, e que bom que assim ele evoluiu para nos possibilitar sobreviver. Desta forma, como a evolução é aética, e visa apenas selecionar os mais bem adaptados, em algum momento histórico e geográfico, para sobreviver e deixar o maior número de descendentes possível, nosso cérebro evoluiu também para as mentiras. A mentira era uma das “formas de sobrevivência”. Para prolongar nossa vida ou para sustentar nossa prole, tínhamos de mentir e enganar. Enganar os predadores para que não fossemos por eles caçados. Tínhamos de enganar as nossas presas, para que ao contrário, as pudéssemos caçar. Tínhamos que enganar outros hominídeos para que não caçassem ou coletassem nossos alimentos, para que nossos filhos tivessem melhor alimentação.

Quando evoluímos minimamente para algo mais organizado, mesmo que ainda patriarcalmente, como algo que já parecia, mesmo que distante, com algo social, a mentira já existia como defesa ou como forma de imperar, e sua técnica de uso apenas se aprofundou. Tínhamos que enganar nossos semelhantes, para que não imaginassem o que estávamos planejando, e tínhamos que desenvolver formas de perceber o que “eles” estariam pensando. Se um membro pudesse prever o pensamento do outro, estaria ele em vantagens para dominá-lo e para engana-lo. Desta forma, a evolução deu início a uma corrida armamentista, de melhorar a capacidade de mentir, e como defesa melhorar a capacidade de perceber mentiras. Deu-se início a uma sucessiva beligerância de ataque (mentir) e defesa (perceber a mentira dos outros), onde aquele que melhor mentisse (melhor dissimulasse ou escondesse seus planos) e que ao mesmo tempo melhor percebesse as mentiras dos outros, estaria muito mais naturalmente no topo da hierarquia bélica mental, ou pelo menos estaria com melhores vantagens para sobrevivência. Como diz uma brincadeira, quando atacado por um leão, eu não preciso correr mais que o leão, basta-me correr mais que o outro humano. Assim, eu não preciso estar no topo da hierarquia política, o que me daria um gasto muito maior de energias, mas bastava-me saber seus planos e saber esconder os meus, e dissimular bem com ele, até mesmo mentindo que estava ao seu lado. Por favor não estou fazendo apologia da mentira e do “uso” intencional dela para obter vantagens, estou apenas tecendo uma linha de pensamento onde a mentir foi algo natural a nossa sobrevivência.

Esta corrida armamentista muito se utilizou da comunicação, e hoje somos exímios contadores de histórias, somos no geral bons mentirosos, as vezes mentimos tão bem que nós mesmos acabamos, com o tempo, por acreditar em nossas mentiras, e somos também, no geral, bons analistas de mentes. Desta forma, a comunicação, e em especial a linguagem oral, acabou e acaba, sendo uma arma poderosa, e mesmo quando não estamos no meio de uma guerra de palavras ou de ideias, muitas vezes acabamos utilizando mal (do ponto de vista ético e humano) as palavras, e fazendo mau uso delas, acabamos por ferir a outros, uma vez que a mentira e a capacidade de inventar histórias fazem parte marcante de nosso cérebro. Devemos ter cuidado especial com todo bom falante, devemos aprofundar racionalmente suas palavrar e verificar o quanto elas estão aderentes a ação, e a uma verdade possível.

Mais importante do que ouvir alguém falando, é perceber o quanto sua fala pode ser verdadeira, não somente do ponto de vista fatual, mas também do ponto de vista de suas ações, comprometimento com o falado, e possíveis fontes citadas. É vital que analisemos criticamente o falado não somente quanto as incoerências internas, mas também quanto ao comportamento de vida do falante, o seu passado pode falar muito mais que suas palavras. Devemos ter a ousadia de provocá-lo para ver até onde é mero teatro. Devemos ter o cuidado de entender se as palavras são mero efeito oratório, são meras técnicas de argumentação, ou se realmente, além de uma paixão superficial, possuem reflexo e sustentação com a verdade. Devemos verificar se as palavras são lastreadas em comportamento, se estas palavras não estão a serviço de poderosos, de organizações religiosas ou seculares, se não estão envoltas em preconceitos e em intenções que não são dignas de uma humanidade socialmente equilibrada, devemos enfim não somente verificar se as palavras estão aderentes a forma de vida do falante, mas também se a forma de vida do falante é digna de podermos chamar de socialmente humana.

Nenhum comentário:

Postar um comentário